Cientistas criticam “pressões políticas e econômicas” para autorizar imunizações experimentais o quanto antes
As futuras vacinas contra a covid-19 não protegerão todas as pessoas que as receberão. Ter 100% de eficácia é sempre um sonho, mas é possível que algumas das primeiras vacinas contra o novo coronavírus estejam tão distantes desses 100% que seria melhor até mesmo não ter nada, como adverte agora um grupo de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Nenhuma das 33 vacinas experimentais que já estão em fase de testes em humanos demonstrou a sua segurança e eficácia por enquanto. “Existe o perigo de que as pressões políticas e econômicas para introduzir rapidamente uma vacina contra a covid-19 possam provocar a introdução generalizada de uma vacina que na verdade seja muito pouco efetiva, por exemplo, que só reduza a incidência em 10% a 20% a incidência da covid-19”, alertam os especialistas, entre eles a médica colombiana Ana María Henao, coordenadora do Plano de Pesquisa e Desenvolvimento de Diagnósticos e Vacinas da OMS. O Governo deDonald Trump prometeu iniciar a administração da vacina nos EUA já em outubro, bem a tempo para a reta final da campanha para a eleição presidencial de 3 de novembro.
Não está claro qual seria o mínimo de eficácia necessário para frear a pandemia. A OMS prefere uma vacina de uma só dose com mais de 70% de eficácia, mas se conformaria com uma vacina de duas doses e 50% de eficácia, segundo os parâmetros estipulados em abril.
Uma recente simulação, dirigida pelo pesquisador Bruce Y. Lee, da Universidade da Cidade de Nova York, sugere que, para prevenir novas epidemias sem outras medidas de controle, a vacina teria que oferecer uma eficácia de 60% se for inoculada em todo mundo, de mais de 70% se só três quartos das pessoas forem imunizadas, e de 80% se abranger apenas 60% da população.
“Ainda não sabemos qual será a eficácia [das atuais vacinas experimentais”, admitiu há três semanas Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA. Em todo caso, mesmo uma utópica vacina com 100% de eficácia não seria muito útil se metade dos cidadãos decidirem não usá-la, segundo a simulação de Lee.
“A utilização de uma vacina pouco efetiva poderia piorar a pandemia de covid-19 se as autoridades assumirem erroneamente que reduz o risco de maneira substancial, ou se as pessoas vacinadas acreditarem equivocadamente que são imunes, reduzindo-se outras medidas de controle da covid-19 ou seu cumprimento”, alertam os especialistas da OMS em um artigo publicado na revista médica The Lancet.
Os pesquisadores advertem também para um fenômeno conhecido como bioarrasto ou biocreep. A eficácia e a segurança das atuais vacinas experimentais são analisadas comparando-se os resultados de dezenas de milhares de voluntários vacinados com um grupo de controle de outras tantas pessoas não vacinadas. Se houver muitos menos doentes de covid-19 entre os vacinados e não se registrar nada de anormal, a vacina será eficaz e segura. Mas se, dada a emergência, for autorizada uma vacina pouco eficaz e esta se transformar no tratamento preventivo padrão, as vacinas experimentais seguintes não teriam que demonstrar que são melhores que um placebo, mas sim que não são piores que a vacina já aprovada.
O fenômeno do bioarrasto é a possibilidade de que, por miragens estatísticas, acabem sendo aceitas como equivalentes vacinas que são cada vez menos eficazes.
Para garantir a eficácia das futuras inoculações, a equipe de especialistas da OMS propõe estudar ao mesmo tempo múltiplas vacinas experimentais, comparando-as entre si e com um placebo. Os pesquisadores acreditam que um ensaio de entre três e seis meses seria suficiente para identificar uma vacina capaz de reduzir o risco pela metade. A OMS faz um apelo aos desenvolvedores de vacinas para que se incorporem a esta futura análise múltipla, denominada Solidariedade.
Alguns deles —como a Universidade de Oxford, as empresas norte-americanas Moderna, Inovio, Arcturus Therapeutics e Johnson & Johnson, a biotecnológica alemã Curevac e a chinesa CanSino Biologics— assinaram em abril uma declaração em que se comprometiam a cooperar e compartilhar dados. Todos eles já começaram a ensaiar suas diferentes vacinas experimentais em humanos, mas por enquanto separadamente.
“Se começarmos a vacinas as pessoas, será preciso saber que nenhuma vacina é 100% efetiva. Algumas pessoas adoecerão apesar da minha vacina”, reconhecia há alguns dias no EL PAÍS o médico israelense Tal Zaks, diretor-científico do laboratório Moderna, uma empresa biotecnológica norte-americana que está testando uma vacina experimental em 30.000 voluntários nos EUA. Zaks disse que sua maior preocupação é que a epidemia seja controlada temporariamente e, diante da ausência de contágios, seja impossível saber se a vacina funciona ou não.
O ensaio internacional Solidariedade da OMS evitaria esse risco de fracasso, ao oferecer “centenas” de lugares para experimentar as vacinas.
“Um ensaio mundial de múltiplas vacinas com um mesmo grupo de controle compartilhado poderia proporcionar resultados mais confiáveis e mais rapidamente […], acelerando o descobrimento de várias vacinas seguras e efetivas”, assinalam os pesquisadores da OMS. Entre os signatários se encontram Philip Krause, especialista em vacinas da agência de medicamentos dos EUA (a FDA), e o epidemiologista Richard Peto, da Universidade de Oxford, ambos do grupo de especialistas da OMS para o ensaio Solidariedade. “O custo do ensaio será uma fração do custo social da covid-19, e esta colaboração global poderia rebater o niilismo e o nacionalismo no âmbito das vacinas”, acrescentam.
O ministro espanhol da Saúde, Salvador Illa, afirmou que as primeiras doses da futura vacina de Oxford chegarão ao seu país em dezembro “se tudo correr bem” nos testes clínicos atualmente em andamento. Mas o fato de chegarem não significa que serão administradas. A Agência Europeia de Medicamentos calcula que “pelo menos até o começo de 2021” nenhuma vacina estará em condições de ser autorizada.
Os países ricos se apressaram em reservar vacinas experimentais sem esperar que os ensaios clínicos terminem. O objetivo é ganhar tempo numa pandemia que atualmente mata 40.000 pessoas por semana no mundo. A UE tem acordos preliminares para comprar 300 milhões de dose da vacina de Oxford, 300 milhões do produto do laboratório Sanofi-GSK, 225 milhões de doses da Curevac, 200 milhões da Johnson & Johnson e 80 milhões da Moderna. Ainda não há garantias de que qualquer uma delas funcione.
EL PAÍS