Os andróginos/hermafroditas de Leonardo
Bruxa usando um espelho mágico
Um estranho desenho, com perturbador tema “pagão” consta da coleção de desenhos enigmáticos de Leonardo.
Uma complexa alegoria de símbolos pagãos e mágicos reunidos, mais os enigmas e códigos de sempre.
Um destes códigos parece evocar o lado feminino e “mágico” de Leonardo.
Como se ele identificasse seu potencial mágico e inclinado para a magia pagã.
Porque, uma das feiticeiras, aquela que se mira no espelho (da direita), espelho que a outra bruxa aponta em sua direção, revela, na sua imagem, não o seu rosto, mas a face do próprio Leonardo. E a mesma feiticeira da direita tem duas faces, e uma delas, é a face do próprio Leonardo.
É como se a bruxa da esquerda realizasse um conjuro no qual os seres mágicos aparecem na cena. E esse conjuro também parece produzir a revelação do espelho mágico: a feiticeira, mago, magia e paganismo que vivem dentro de Leonardo, apesar da perseguição direta da Inquisição contra os costumes pagãos.
Serpentes, cães, pássaros, faunos e demais entidades mágicas circulam no espaço, e a bruxa da esquerda segura uma espada, símbolo de defesa contra as entidades invocadas (porque sempre aparecem dois tipos de entidades, as boas e as malignas, em operações do tipo).
Porém, o alvo central de toda essa invocação elemental está na abertura do Espelho mágico, que é um artefato real de magia, similar da bola de cristal, com iguais poderes de revelação (o conto de Branca de Neve, a Bruxa e o espelho mágico assimilam essa arte mágica real). Aqui, Leonardo parece procurar, nas profundezas do seu ser, as conexões com a magia dentro de si mesmo, ou o seu potencial “feiticeiro” (ou alquimista, que é uma forma de operação mágica também)
Em Leonardo, estes valores que ele procurava despertar, à sombra da Igreja, magia, paganismo, astrologia, alquimia e Ocultismo, valores que naquela época e até os nossos dias a Igreja Católica e também Protestante interpretam como satanistas…
De qualquer forma, o “Hermafrodita” exposto neste desenho aparece, mais uma vez, do lado “esquerdo” da cena, à esquerda da primeira bruxa, que empunha espada (à direita do observador), confirmando que a via esquerda é a via oculta, a via solitária do deserto da Iniciação, que começa com o Batismo para nos preparar para a morte que conduz o renascimento em vida.
Então, de forma sutil, ele assinala que o caminho ou via da esquerda é a via alquimista em busca do andrógino primordial, através do qual o nosso renascimento pleno acontece, confirmando todos os códigos anteriores e alusões ao mesmo contexto de sempre.
Corpo andrógino
Sem dúvida, esse é o andrógino mais estranho de Leonardo.
Ele não reproduz a dualidade clássica macho-fêmea da alquimia, já que expõe frontalmente apenas a sexualidade masculina num corpo de duas cabeças que não pertencem a um homem e uma mulher, mas sim, a um homem jovem e outro homem velho, e esta é outra concepção da androginia, a juventude (vitalidade) e a ancianidade (sabedoria).
Para Leonardo, esses dois aspectos da vida eram complementares, pois que adianta um corpo jovem sem sabedoria de vida, e que adianta um corpo velho sem o vigor da juventude?
O ideal era a reunião de ambos os elementos.
Em outros desenhos, Leonardo já havia estudado essa combinação, e neste desenho, ele idealizou a fusão perfeita.
O corpo jovem vigoroso e a mente anciã experiente!
O velho, à direita, e o jovem, à esquerda.
O corpo conserva os braços de cada um, de modo que a figura tem quatro braços.
A androginia está nas duas cabeças em um corpo com quatro braços e duas pernas, compartilhando o mesmo sexo (masculino). Essa era a ideia desejada por Leonardo, ter a mente de um ancião experiente num corpo rejuvenescido, o desejo de todo alquimista.
Nos desenhos de Leonardo, ele sempre associou a juventude ao feminino, e a sabedoria da ancianidade ao masculino. Por isso, colocou traços muito femininos nos jovens que ele desenhou e pintou, jovens masculinos, como seu discípulo Salai. Era outra forma dele encarar as polaridades complementares da natureza humana além do tradicional masculino-feminino nos gêneros sexuais.
Neste andrógino masculino (andrógino temporal, e não sexual, o jovem e o velho numa única entidade) o corpo do jovem (o lado onde está a cabeça e braços do jovem) carrega um ramo vegetal, e dele caem flores no chão, enquanto o corpo do velho (esquerda) carrega outro ramo, este com frutos, caindo no chão também.
As flores representam o vigor e a fertilidade da juventude, enquanto os frutos representam o trabalho de uma vida aparecendo na idade mais avançada.
Os frutos que o velho derruba no chão, ou parte deles, são apanhados pela mão do jovem, que estende seu braço na direção do corpo do velho, enquanto as flores que o jovem derruba, de igual modo, são apanhados pela mão do velho, que também estende seu braço na direção do corpo do jovem, fechando o circuito da energia polarizada deste enigmático andrógino. E como querendo dizer: o velho emprega a vitalidade do jovem para criar seus frutos, enquanto o jovem absorve os frutos do velho para aprender!
E parte destas flores caem no chão, como que querendo dizer que os dons do andrógino não são somente para ele mesmo, mas tambem para serem partilhados com o mundo.
O pé direito do andrógino pisa uma superfície líquida, enquanto o pé esquerdo pisa um plano que parece sólido, e esse chão parece mais um livro aberto, sobre o qual os pés do andrógino estão pisando.
A alegoria é muito complexa, e neste ponto se aproxima bastante da descrição do Anjo de Deus (e Anjos são criaturas andróginas) no capítulo X do Apocalipse, que declara que este Anjo, quando desceu do céu, pisou o mar com o pé direito e a terra com o pé esquerdo.
E lá no Gênesis 1, encontramos uma ressonância com os mesmos valores, no terceiro Dia da Criação.
Porque no terceiro dia, foram criados, a partir das águas inferiores, os elementos mar e terra.
Mar se relaciona com o lado direito do corpo, masculino, e água, a semente que fecunda a terra, tanto que a vida veio da água, do mar, e só depois avançou para a terra.
E a terra, elemento seco, se relaciona com o feminino, o ventre da terra que recebe a semente e gera o verde vegetal, flores e frutos. Essa definição é importante para entender a simbologia do espírito andrógino e suas duas potências, masculino e feminino, direito e esquerdo, semente e fruto, mar e terra.
Além disso, as flores representam o encanto e a beleza da feminilidade, enquanto os frutos traduzem o trabalho e o labor associado à energia masculina. São vários elementos se complementando nesse andrógino “ideal” na concepção de Leonardo.
Esse desenho ilustra bem o andrógino, como gêmeos siameses, que ele sugeriu em pinturas notáveis, como aquelas em que a Virgem Maria e sua mãe, Sant’Ana, parecem fundir seus corpos num abraço alquímico, elas mesmas nem parecendo mãe filha, mas sim, irmãs gêmeas! São os mesmos argumentos alquimistas de sempre, cujo alvo é a androginia física, mental e espiritual, a chave da vida longa e da própria imortalidade, conforme os arcanos sa sabedoria hermética que ele tanto explorou em vida.
Leonardo certamente não era ignorante aos mistérios da Bíblia e aos argumentos da Cabala secreta e da ciência dos templários… ele era apenas contra o dogma imposto da Seita romana…
São Sebastião
Outro andrógino masculino entre os desenhos de Leonardo, e desta vez, usando a figura de um santo muito conhecido da Cristandade, São Sebastião, aquele santo que foi amarrado em uma coluna e ferido de morte por flechadas.
O corpo masculino nu (estudo de corpos) aqui possui duas cabeças (como o andrógino anterior) e enquanto Leonardo selava seus códigos em mais uma obra, exercitava seus talentos de desenhista em mais um ensaio anatômico impecável.
Recentemente, em 2016, outro desenho de Leonardo com o mesmo tema, São Sebastião, foi encontrado. Atado a uma árvore, algumas diferenças em relação ao anterior aparecem, pois este “novo” São Sebastião não aparece com duas cabeças, porém, com quatro pernas, o que, a princípio (e para muitos estudiosos é assim) pode apenas retratar um estudo da dinâmica de movimento do corpo humano (e não um andrógino), tal como acontece no desenho do Homem Vitruviano.
Porém, é o conjunto de obra de Leonardo que não sustenta essa suposição.
A Donzela com Unicórnio
Dois desenhos com unicórnios (uma entre tantas outras imagens pagãs exploradas por Leonardo) repetem os mesmos códigos.
Na Donzela com Unicórnio, num esboço simples e rápido do mestre, vemos uma dama sentada, e mais uma vez, o dedo indicador da mão direita aponta para o unicórnio, que está junto de uma árvore, à esquerda da cena (direita de quem vê): o mesmo argumento de sempre, a via esquerda, a via oculta, secreta, alquímica, hermética, solitária.
Segundo a lenda, unicórnios eram animais terrivelmente agressivos, mas só se acalmavam na presença de mulheres virgens. Claro, a alegoria alquímica acontece, porque o Unicórnio branco é um símbolo do mercúrio refinado, sublimado, e o chifre, a energia masculina, viril (enxofre) combinada no animal mítico.
O chifre do unicórnio se cruza com o tronco da árvore, formando a letra X, a cruz, INRI etc.
A árvore da ciência (ou da vida) sempre presente, parte essencial dos códigos, e na verdade, não é para o cavalo que a Dama aponta, mas para todo esse segredo codificado na cena à sua esquerda.
Ela, a Virgem, também entra no conjunto do código, signo de Virgem e a sublimação do mercúrio, transmutação, purificação do mercúrio negro em branco, pronto para ser fecundado pelo enxofre.
No outro desenho, o Unicórnio aparece deitado, se contorcendo à beira de um lago onde mergulha seu chifre.
Um contexto sexual dentro das concepções pagãs associadas à fertilidade, sem dúvida, mas também, elementares simbologias da Alquimia em busca do Andrógino, ou seja, a Virgem somada ao Masculino, o Unicórnio, debaixo da árvore da ciência (ou da vida).
JP em 18.10.2020