Onde conhecemos a real natureza das entidades descritas em todas as culturas como daimons, gênios ou anjos da guarda.
Uma das razões da demora deste novo texto é a divergência entre quem recomenda prudência e quem requer urgência, diante do argumento irrespondível de que não há mais tempo para insinuações. Chegou-se, por fim, a um consenso, a um meio termo [1]. Portanto, este texto será mais ousado do que planejado, mas apenas mencionará certos pontos mais perturbadores, sem que nos aprofundemos. Ao menos por enquanto.
Neste texto e nos dois seguintes, trataremos da natureza humana e como ela opera no espaço daquilo que chamamos de hiper contexto, ou seja, no espaço de coexistência de infinitas [2] realidades alternativas.
Se uma parte de você lê as últimas palavras do parágrafo anterior com incredulidade, isso é um bom sinal, pois significa que você detém a postura emocional necessária para estudar por si mesmo esta verdade. Se além disso você possuir alguma inteligência, poderá chegar a suas próprias conclusões sobre tudo o que ler e descobrir, sem jamais acreditar irrefletivamente na palavra de qualquer especialista, autoridade ou diletante da matéria. Aqui, iremos adiante por não ser esse exatamente o foco desta exposição (ou melhor, de nosso alerta).
Conforme foi apresentado na primeira parte, a humanidade deparou-se com a existência de realidades alternativas já no início do século XX. As observações obtidas em laboratório são incontestáveis (e retornaremos a elas futuramente) e cem anos de experimentos não deixam dúvida a respeito desse fato [3].
Mais ainda, essa é uma verdade conhecida, ou ao menos suspeitada, por pensadores independentes de várias origens e épocas que puderam, com honestidade, estudar a realidade em que vivemos [4]. O público em geral ignora esse fato, fundamentalmente, por um único motivo: a verdade sobre o mundo não corresponde à nossa experiência cotidiana, e apresentamos, enquanto espécie, uma natural resistência a aceitar paradigmas extremamente contraintuitivos, principalmente quando contrariam totalmente nossa percepção física do mundo. Em outras palavras, temos o arraigado costume de acreditar que a realidade existe apenas e claramente debaixo de nossos olhos [5]. Basta ver a quantidade impressionante de seres humanos que, em pleno século XXI, ainda defendem que a Terra é plana. A humanidade ainda tem um calcanhar na Idade Média.
Mas há uma forma muito útil de aproximar qualquer pessoa da verdade sobre quem realmente é sobre qual a natureza do mundo em que vive. A mente humana pode assimilar verdades contraituitivas caso as associe a ideias com que estamos familiarizados. Por isso, símbolos e metáforas nos são úteis, e a partir de agora as empregaremos, com economia. De qualquer modo, qualquer leitor ficará impressionado de constatar que muitos símbolos e metáforas apresentados aqui ajustam-se quase que perfeitamente à descrição da realidade tal como ela é.
SOLVE ET COAGULA
Por exemplo, há dois lemas entre os alquimistas que se provaram mais significativos e verdadeiros ao decorrer dos séculos. Isso, independentemente do sentido que seus criadores desejavam lhes atribuir originalmente.
O primeiro é “assim acima, como abaixo” [6], forma lacônica de dizer, entre outras coisas, que há padrões de estrutura, design e funcionamento que podem ser identificados tanto no mundo macroscópico observável [7] como no mundo microscópico. Esferas, espirais, ramificações, simetrias e fractrais são exemplos clássicos de padrões de design presentes na natureza e no universo.
O outro lema, que por sua vez decorre desse primeiro e descreve justo um padrão de funcionamento e estrutura que pode ser identificado universalmente, em vários níveis de estrutura da realidade, é “solve et coagula”.
“Solve et coagula” descreve um processo no qual algo é separado em partes integrantes de seu todo (solve, “dissolver”) para, a seguir, ser reconstruído num único todo novamente (coagula) em um processo de regra contínuo, seja com ou sem incrementos e reconfigurações a cada nova reconstrução. “Solve et coagula”, porém, também descreve um padrão estrutural de separação e união – ou, dito de outra forma, de estreita relação entre forças repulsivas e forças que coesivas.
É isso que veremos mais adiante em nosso aprendizado, quando nos detivermos com mais atenção em duas regras que sintetizam o funcionamento das realidades alternativas: versões de uma mesma partícula (e objeto, e ser vivo) exercem entre si força de mútua repulsão [8] (na verdade, essa regra tem uma extensão maior: qualquer ser vivo ou objeto, mesmo a menor partícula existente, não interage de forma alguma com os demais objetos, seres e partículas que compõem todas as outras realidades alternativas (o que permite a sobreposição genérica de realidades alternativas) da mesma forma com que cada objeto e ser vivo está estreitamente unido com os demais que compõem a sua realidade [9]. Em toda a sua complexidade, o funcionamento do universo é simples e elegante [10].
Esse é um ponto importante para compreendermos quem realmente somos e a importância da consciência dos seres vivos para o universo. Solve: de um dado ponto presente, múltiplas versões alternativas de um objeto divergem entre si, em múltiplas possibilidades futuras (essa é a causa do resultado obtido com o experimento da dupla fenda, formulado por Thomas Young); Coagula: cada uma dessas possibilidades está estreitamente entrelaçada com uma versão de todas as outras coisas existentes no universo, e formam, junto a essas versões de todas as coisas, uma realidade única, que coexiste, em sobreposição, a inúmeras outras realidades possíveis (esse entrelaçamento é a causa do resultado obtido com o experimento EPR, formulado por Einstein).
Não se está falando, portanto, de universos alternativos, mas de um só universo que abriga inúmeras realidades coexistentes e sobrepostas. Uma partícula, qualquer partícula, só interage com partículas que pertencem à sua realidade (a realidade na qual está entrelaçada), jamais interagindo com qualquer outra partícula que exista em outra realidade (salvo com a sua versão existente nessa outra realidade, da qual se repele) Graças a isso, ocorre a sobreposição de realidades. Graças a isso, a versão do copo que cai de sua mão num acidente e a versão do copo que não cai pois você impediu coexistem neste mesmo único universo.
Como Hugh Everett e Stephen Hawking diriam, com mais tecnicidade, o universo é uma enorme função de onda (Stephen Hawking, James Hartle: The Wave Function of the Universe, Physical Review D, vol. 28).
Este universo não é imenso apenas no seu espaço em que se expande, não é imenso apenas no tempo em que existe e evolui – ele é imenso também na profundidade de possibilidades que abriga em si mesmo. Essas possibilidades, por assim dizer, dispersam-se no fluxo do tempo em ramificações que coexistem no mesmo espaço, ocupando exatamente o mesmo espaço, intangíveis umas às outras, compondo cada qual uma realidade alternativa. Porém, há, a princípio, total separação entre cada realidade.
Diz-se “a princípio” pois há exceções. A vida orgânica, por exemplo, é algo notável. Por razões evolutivas, a natureza adaptou-se a esse universo de realidades alternativas de forma engenhosa. Assim, como foi constatado, a sobreposição de realidades é uma peça chave da fotossíntese de qualquer planta, mesmo a mais ordinária. Sim, isso é um fato, a fotossíntese que ocorre nas folhas de qualquer árvore opera com a contínua sobreposição de versões de uma mesma partícula situadas em realidades alternativas:
De outras maneiras, porém, a vida aproveitou-se dessa característica fundamental do universo: nos animais superiores, criou um cérebro que funciona para operar e garantir a sobrevivência do organismo sem que ele perceba a contínua ramificação de seu destino – para todos os efeitos, o organismo está consciente apenas de uma versão sua a cada momento presente, e lida apenas com a realidade alternativa com a qual está entrelaçado. Assim como temos a constante impressão de que existe um só momento presente, que flui continuamente em direção ao futuro, nosso cérebro nos dá a constante impressão de que há uma só realidade coesa e que jamais se bifurca.
Contudo, cada ser vivo não é único, mas múltiplo, e a natureza “sabe” disso – não sentido de que a natureza pensa, mas no sentido de que a vida biológica atua, enquanto inserida no fluxo de realidades alternativas, com a mesma desenvoltura que atua diante do fluxo do tempo e na extensão do espaço [11]. E, assim sendo, a natureza desenvolveu nos animais superiores, ao longo da evolução, uma coordenação básica de atividades fundamentais de cada versão de um dado organismo vivo que existe em uma realidade alternativa. Dito de outra forma, não são só as folhas de um arbusto qualquer que têm o privilégio de servir-se das múltiplas realidades sobrepostas em seu benefício, para realizar a singela e rotineira fotossíntese. Nossa consciência também.
A NATUREZA DOS ANJOS
Já havíamos utilizado anteriormente a metáfora de uma rede de computadores, em que cada computador opera com um sistema operacional básico e individual, executando tarefas próprias em seu ambiente de trabalho, enquanto a atividade da rede é coordenada por um sistema operacional localizado em nenhum e em todos os computadores ao mesmo tempo – um sistema em nuvem [12]. Da mesma forma, cada versão de você que existe nos diversos universos alternativos, embora perceba e esteja convicta de que existe apenas “a” realidade com a qual está entrelaçada, não obstante tem sua existência coordenadas por um sistema operacional superior, que coordena seu funcionamento no ambiente “de rede” da múltiplas realidades existentes.
Isso não é novidade. Como foi dito anteriormente, a verdade já foi intuída por indivíduos de espírito independente em várias épocas e culturas. Platão já falava (em Timeus, 90-90d) que “precisamos entender que Deus conferiu a cada um de nós um daimon para nos conduzir – o qual nos ergue da terra em direção a uma afinidade celestial, como uma planta cujas raízes não estão na terra [poderíamos entender como: “não estão nesta realidade específica”], mas nos céus [poderíamos entender como: “mas no contexto das múltiplas realidades sobrepostas”]. Em Apologia de Sócrates, Platão ainda nos conta que Sócrates comentava ter um daimon que o tentava livrar de perigos, embora jamais lhe dissesse o que fazer. Posteriormente, os romanos deram ao daimon grego o nome de geni, uma deidade pessoal de cada um, e que mais tarde, com a racionalização, tornou-se só um símbolo de um talento mental: o gênio de uma pessoa. Paralelamente, os judeus da época do Antigo Testamento elaboraram o conceito de Malakh, que nos primeiros séculos da Era Cristã foram o substrato para a formação do conceito medieval de Anjo da Guarda.
Mas, basicamente, o que os antigos filósofos e doutrinadores denominavam de daimon, geni, Malak ou Anjo da Guarda consiste no aspecto superior ou profundo de cada um de nós que não habita uma realidade alternativa específica, e sim que opera naquilo que convencionamos chamar de hipercontexto, o contexto em que todas as realidades coexistem. A função desse “Eu Profundo” é coordenar, como em um sistema em rede, todo o conjunto formado por cada “eu superficial” que habita uma só realidade.
O Eu Profundo (ou Eu Superior) de uma pessoa coordena a atividade de cada versão sua existente em cada realidade alternativa.Mas, se estamos num sistema de rede, qual a programação utilizada por esse daimon a que cada um de nós está unido?
Na Europa do século vinte, um outro indivíduo de pensamento independente chegou à mesma conclusão que Sócrates e Platão. Tateando parte da verdade com sua mente inquieta, esse indivíduo percebeu a existência da linguagem de programação com a qual o Eu Profundo de cada indivíduo coordena a atividade, em rede, de todos os “eus superficiais” ou “individualizados” que habitam cada qual uma só realidade. A linguagem de programação sempre esteve aí, na nossa frente, pronta para ser percebida, mas poucos antes realmente a perceberam. Ela estava presente nos mitos de cada cultura, e também presente em nossos sonhos. O nome desse sujeito é Carl Gustav Jung, o discípulo predileto de Freud, e ele deu ao Eu Profundo o nome Self.
O MAPEAMENTO DO EU PROFUNDO
Para entendermos a proposta de Jung como uma representação do modelo de funcionamento do ser humano no ambiente do hipercontexto, convém utilizar uma nova metáfora, também de natureza computacional. Os programadores, como um desenvolvimento da programação procedural (linhas de comando que correspondem a configurações de bits), criaram o que se chama de “linguagem de programação orientada a objetos”.
“Objeto”, nesse caso, é algo situado num nível de abstração maior, em relação ao tipo de programação que se fazia antes: objeto é como um “módulo”, um encapsulamento de linhas de comando, que fornecem determinadas informações ao sistema, a partir dos dados que lhe são repassados.
Uma “classe” é um modelo de objeto, contendo regras e métodos de funcionamento que servirão para que se construam outros objetos a partir desse modelo (esses objetos são “instâncias” de uma “classe”). Uma vez criado um objeto, ele não precisa se limitar ao programa para o qual foi criado: como é um módulo auto-contido, pode ser usado em outros programas, e ele próprio pode fazer parte de um objeto mais abrangente (um nível de abstração maior). Mais ainda, um objeto não exige que o programador conheça necessariamente as linhas de comando do qual é composto (só se desejar alterá-las para um propósito específico), já que o objeto é um módulo em que as linhas de comando estão encapsuladas, bastando ao programador que saiba quais dados repassará ao objeto na expectativa de obter determinados resultados.
Não demorou para que programadores se dessem conta da semelhança entre a “linguagem de programação orientada a objetos” e a filosofia platônica. Platão cogitava que existem formas puras (“A Árvore”, “A Casa”), modelos a partir do qual surgem as formas concretas de nossa realidade (as árvores que estão por aí, as casas que construímos), que herdam as características essenciais das formas puras. Do mesmo modo, as classes da linguagem de programação orientada ao objetos são “formas puras”, modelos, a partir das quais surgem objetos, “instâncias” que herdam suas características.
O que Jung descobriu é que a mente humana, no contexto mais amplo do que nossa realidade individual (e que ele denominou inconsciente coletivo), funciona com base em uma “linguagem de programação” semelhante. Num alto nível de abstração, no ambiente do hipercontexto, em que a totalidade dos cérebros sobrepostos operam em conjunto, há “classes” que correspondem às experiências concretas e universais que cada ser humano potencialmente pode experimentar em sua realidade concreta.
Ao estudar os sonhos de seus pacientes, Jung observou como eram semelhantes às mitologias de diversas culturas. E ao estudar as mitologias de diversas culturas, observou que há pontos em comum a todas elas: certos personagens, símbolos e histórias. A essas “classes” que representam e incorporam experiências humanas universais, Jung deu o nome de arquétipos.
A partir dessas percepções iniciais, Jung dedicou sua vida ao mapeamento do sistema constituído por arquétipos, estudando sonhos individuais e mitos de todas as culturas. Descreveu desse modo a “linguagem de programação” na qual é estruturado um sistema de nível mais abstrato e profundo que o sistema que corresponde à nossa vida individual, entrelaçados que estamos com uma realidade específica.
Personagens como a mãe, a sombra, o herói e o embusteiro, estruturas como a mandala e a árvore da vida, histórias como o sacrifício e o dilúvio, processos como a aproximação circular ou espiral (circumambulation) e a conjunção dos opostos (coniunctio). Essas e outras “classes” ou arquétipos correspondem à experiências humanas universais e também à estrutura do próprio software que coordena a vida de todas as nossas versões alternativas, coexistentes em realidades sobrepostas.
A riqueza dos arquétipos.
Situado como eixo desse conjunto de arquétipos, está um arquétipo central, que Jung denominou de Self. O Self, em sua posição central no sistema, exerce a função de coordenação da totalidade e harmonização de todos os demais arquétipos, intermediando as relações entre o que Jung chamava de “consciente” e “inconsciente coletivo”. O Self, como podemos perceber, é nome dado por Jung àquela parte de nós que se situa em um ambiente de rede (inconsciente coletivo), acima de todas as realidades alternativas em que nossas versões individuais vivem suas vidas (consciente). O Self é nosso Eu Profundo.
O mapeamento feito por Jung é complexo, mas na segunda parte desse capítulo iremos apresentar os seus principais elementos, situando-nos no ambiente do hipercontexto. Com isso, compreenderemos como funciona a lógica interna do nosso Eu Profundo. Na terceira parte, aprenderemos os métodos de entrarmos em contato desperto com nosso Eu Profundo, e retomaremos a análise sobre um aspecto fundamental do universo, o entrelaçamento.
Essas etapas são essenciais para que o leitor compreenda a natureza do perigo a que a humanidade está exposta, com risco de extermínio de toda vida humana. Pois quando percebemos que as realidades alternativas são coexistentes mas sobrepostas, sem que interajam entre si de qualquer forma (sem que se toquem, realmente ocupando o mesmo espaço porque cada ponto do espaço é, de certa forma, infinitamente profundo para que nele possam estar todas as possibilidades de uma coisa ser), conseguimos entender que todas as versões suas possíveis coexistem no mesmo universo. Mais ainda, conseguimos entender que há uma forma dessas versões interagirem entre si num nível profundo, e que é isso que torna a vida na Terra algo especial.