Um escândalo atingiu a Nobel de física e química Marie Curie em 1911: cartas vazadas para a imprensa revelaram que ela tinha um amante.
Em plena “shitstorm”, o conselho útil de um colega: deixe o lixo para os répteis.
Para júbilo dos entusiastas do célebre físico, em dezembro de 2014 um conjunto de documentos pessoais de Albert Einstein (1879-1955) – cartas, diários, cartões postais – foi colocado online através do projeto The Digital Einstein Papers.
Para além da alta ciência e da genialidade proverbialmente einsteiniana, entre os pontos altos de dignidade e sabedoria contidos nos cerca de 5 mil documentos, destaca-se uma carta de novembro de 1911, dirigida à colega Marie Curie (1867-1934), pioneira da pesquisa da radioatividade.
Ela estava prestes a receber seu segundo Prêmio Nobel, de química – oito anos depois de compartilhar com o marido, Pierre Curie, o Nobel da Física. No momento, contudo, se vira subitamente envolvida num escândalo midiático – o que hoje se chamaria uma shitstorm –, quando um periódico de grande tiragem alardeou a surpreendente notícia de que a polonesa naturalizada francesa tinha um amante.
Viúva há cinco anos, ela mantinha uma relação amorosa com o também físico Paul Langevin, ex-aluno de doutorado de Pierre Curie e também amigo de Einstein. Apesar de separado, tecnicamente ele seguia sendo casado, e a tempestade doméstica se tornou pública quando a mulher do físico entregou aos meios de comunicação as cartas de amor entre Langevin e a renomada colega, cinco anos mais velha do que ele.
“Deixe o lixo para os répteis”
Quando o assunto veio à luz, Curie, Langevin e outros 20 pesquisadores importantes se encontravam numa conferência de elite em Bruxelas. Contudo, ao retornar a Paris, ela foi recebida por uma multidão que cercou e apedrejou sua casa, aterrorizando-a e a suas duas filhas, então com sete e 14 anos de idade. As três tiveram que se proteger, alojando-se temporariamente na casa de uma amiga.
Embora o espetacular trabalho de Marie Curie como cientista devesse ser o único foco de atenções naquele momento – além de primeira mulher a receber o prestigioso prêmio, até hoje ela é a única pessoa laureada em dois campos científicos distintos –, a curiosidade mórbida, alimentada por uma boa dose de xenofobia, foi maior do que tudo.
Em meio a essa turbulência pessoal, chegou a Marie Curie uma carta de Albert Einstein, datada de 23 de novembro de 1911. Ambos haviam se conhecido na recente conferência belga, e a simpatia mútua fora imediata. Indignado com o comportamento da imprensa, ele tomou a iniciativa de oferecer palavras de apoio à colega.
“Altamente estimada Mme. Curie!
Não ria de mim por escrever-lhe sem ter nada sensato para dizer. Mas estou tão enfurecido pela maneira infame como o público atualmente ousa se ocupar de si, que preciso absolutamente expressar esse sentimento. Mas estou convencido de que a senhora despreza essa plebe da mesma forma, quer ela finja respeito hipócrita, quer tente saciar através de si sua avidez por sensacionalismo!
Sinto-me impelido a lhe dizer quanto aprendi a admirar seu intelecto, sua tenacidade, sua honestidade, e que me considero afortunado por tê-la conhecido pessoalmente em Bruxelas. Quem não conta entre os répteis, seguirá feliz por ter entre nós personalidades como a senhora e também Langevin, seres humanos de verdade, cujo contato deixa a gente feliz. Se a plebe ainda continuar se ocupando da senhora, simplesmente não leia esse lixo, mas sim deixe-o para o réptil para quem ele é fabricado.
As mais amistosas saudações à senhora, Langevin e Perrin, de seu dedicado
A. Einstein”
Difícil imaginar uma receita mais sábia e eficaz para lidar com os trolls, haters, shitstorms e outros males que afligem as redes sociais contemporâneas. A mensagem se encerra com um pós-escrito cujo sentido talvez só seja transparente para os mais versados em física:
“P.S.: Determinei a lei estatística do movimento da molécula diatômica no campo de radiação de Planck através de uma divertida piada, naturalmente partindo do princípio de que o movimento da estrutura transcorra segundo as leis da mecânica convencional. Minha esperança de que essa lei seja a que é válida na realidade, entretanto, é muito reduzida.”
Admiração mútua
Como costuma acontecer, o falso ultraje popular logo acabou esquecido. Langevin acertou extrajudicialmente a situação com a esposa; Curie confirmou à Academia Sueca que assistiria à entrega do Nobel, a qual transcorreu sem incidentes.
Agradecida pelo apoio tão sincero quanto espontâneo, a cientista estabeleceu uma amizade estreita com Einstein. Ambos passaram férias juntos com os filhos no verão de 1913. Mais tarde, ela se oporia aos sentimentos antigermânicos ainda presentes após a Primeira Guerra Mundial, pressionando para que ele desse uma conferência em Paris em 1922.
Durante uma homenagem póstuma a Marie Salomea Skłodowska–Curie no Museu Roerich de Nova York, em 1935 – ela morrera em julho do ano anterior – Einstein declarou: “Cheguei a admirar sua grandeza humana num grau cada vez mais alto. Sua força, sua pureza de vontade, sua austeridade consigo mesma, sua objetividade, seu julgamento incorruptível: tudo isso era de uma classe que raramente se encontra reunida num só indivíduo.”
E concluiu: “Se uma pequena parte da força de caráter e da devoção de Madame Curie estivesse viva nos intelectuais europeus, a Europa teria um futuro mais brilhante.“
Um gênio completo
JP em 29.07.2022